O amargo regresso

O amargo regressoARTE KIKO

A imagem de brasileiros com mãos e pés algemados, saindo pela porta de emergência do avião que os trazia de volta para casa, depois de ver o sonho de viver nos Estados Unidos se transformar no pesadelo da deportação, foi, sem dúvida, impactante. Por uma série de razões. A primeira, claro, é a cena por si mesma. Sem tecer considerações sobre a legislação nem sobre os acordos que dão às autoridades norte-americanas o direito e o poder de devolver a seus países aqueles que vivem nos Estados Unidos sem preencher os requisitos legais de imigração, é sempre triste ver pessoas constrangidas a interromper sonhos que, muitas vezes, lhes custaram muito caro.

Seja como for, o pouso de emergência no aeroporto de Manaus, na noite da sexta-feira retrasada, do avião repleto de brasileiros que viviam ilegalmente nos Estados Unidos deu e ainda tem dado o que falar. Na quarta-feira passada, o Encarregado de Negócios Daniel Escobar, que, na ausência de um embaixador nomeado, responde pelos interesses norte-americanos no Brasil, esteve no Itamaraty e, conforme relatos de diplomatas brasileiros, teria pedido “desculpas” pelo incidente.

Sem entrar no mérito das dezenas de voos semelhantes realizados durante o governo de Joe Biden, o incidente aqueceu o debate em torno na política anti-imigração prometida pelo recém-empossado presidente Donald Trump desde a campanha eleitoral do ano passado. Quase todos os 88 brasileiros a bordo estavam algemados e reclamaram das condições precárias do voo, da falta de comida, das restrições para uso do banheiro e da truculência dos agentes norte-americanos a bordo.

Em Manaus, onde o avião que os transportava pousou por absoluta falta de condições de seguir voando, as algemas só foram retiradas depois que os passageiros forçaram a saída pelas portas de emergência. Por ordem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os deportados, já sem as algemas, embarcaram num avião da FAB com destino a Belo Horizonte.

Não é o caso, definitivamente, de tratar como heróis os deportados que tiveram frustrado seu “sonho americano”. Também não é o caso, na direção contrária, de insistir na tecla de que, entre os brasileiros mandados de volta, só havia pessoas que, além de viver ilegalmente nos Estados Unidos, cometeram crimes durante a permanência por lá. O episódio é muito mais complexo do que podem sugerir conclusões precipitadas como essas e vai muito além dos dramas pessoais de quem deixou sua terra para tentar a sorte e acabou mandado de volta.

PAÍS ACOLHEDOR — O enredo não se inicia com a volta forçada dos imigrantes para o Brasil nem com as condições aviltantes da viagem. Tudo começa com as razões que levam tanta gente a renunciar à vida em seu país natal para trabalhar em condições ilegais — e, portanto, sujeitas à deportação — nos Estados Unidos. É inconcebível que um país com as características do Brasil, que ao longo da história, acolheu milhões de estrangeiros em busca de condições de vida dignas e promissoras, hoje não consiga oferecer a chance de prosperidade a seus filhos. É inaceitável que um país com tanta riqueza e tanto trabalho por fazer veja seus filhos se lançarem a uma viagem arriscada na tentativa de construir, em um país com idioma, hábitos, cultura e objetivos diferentes dos seus, o futuro que não conseguem vislumbrar na própria terra.

Pior ainda é saber que a maioria dos imigrantes ilegais mandados de volta sobreviviam nos Estados Unidos à custa de trabalhos árduos e mal remunerados, que não se sujeitariam a realizar no Brasil. Isso mesmo. A maioria dos brasileiros, assim como dos venezuelanos, colombianos, peruanos, nicaraguenses, mexicanos e outros latino-americanos que vivem ilegalmente nos Estados, ganha a vida em subempregos que não exigem preparo nem qualificação — apenas oportunidade e disposição de aceitar as condições desfavoráveis que lhes são oferecidas. São faxineiros, lavadores de pratos, ajudantes de ajudantes de cozinha, entregadores de comida e uma série de profissionais que, mesmo subempregados, conseguem ter por lá condições de vida superiores às que teriam em trabalhos com carteira assinada no Brasil.

BASE DA PIRÂMIDE — Não se trata, aqui, de reduzir a importância das atividades que os latino-americanos abraçam em suas novas vidas. O que interessa dizer é que as pessoas que emigram para os Estados Unidos se sujeitam a realizar tarefas que não realizariam no Brasil nem em qualquer outro país de origem. E que os trabalhadores norte-americanos geralmente se recusam a fazer.

Lá, os imigrantes brasileiros, com as honrosas exceções de sempre, integram a base da base da base da pirâmide da força de trabalho. Uma discussão mais aprofundada desse fenômeno, claro, exige que se considerem os critérios de formação e a trajetória de desenvolvimento de cada um desses dois Estados. Mas cabe dizer, de forma resumida, que, nos Estados Unidos, os imigrantes pegam no batente sem a cobertura dos “direitos trabalhistas” que, no Brasil, multiplicam o custo da mão de obra e desestimulam qualquer empresário a gerar empregos. E que, no final das contas, destinam à máquina de arrecadação do Estado um dinheiro que poderia ser embolsado pelo trabalhador ou reinvestido na geração de mais oportunidades.

Isso mesmo. Nos Estados Unidos não existem folgas remuneradas nos finais de semana nem férias obrigatórias de 30 dias por ano. Não tem INSS, FGTS, 13º salário, adicional noturno, salário desemprego e uma série de direitos que oneram as obrigações dos empregadores e desestimulam a geração de empregos e a própria realização de negócios. E que, em última instância, reduzem oportunidades que, se fossem oferecidas, ajudariam a manter no Brasil muitas das pessoas que, no final da história, acabam enxergando na imigração, ainda que ilegal, uma maneira de progredir na vida.

O fato é que, mesmo contando com todos os “direitos” oferecidos pelo país natal, milhares e milhares de brasileiros preferem viver nos Estados Unidos. Ainda que estejam conscientes do risco de serem detidos e mandados de volta com uma mão na frente e outra atrás, preferem viver por sua própria conta e risco em solo norte-americano do que dar murro em ponta de faca em um país onde o Estado ineficiente se apropria de parte de seu esforço para financiar uma máquina onerosa e ineficiente.

De acordo com o Itamaraty, a comunidade brasileira nos Estados Unidos é de 2,8 milhões de habitantes. Desses, 230 mil vivem na ilegalidade e podem ser deportados pelas autoridades da Imigração e Fiscalização Aduaneira — ICE na sigla em inglês. De acordo com uma lista elaborada pelo órgão no ano passado — antes da posse de Trump, portanto — há neste momento mais de 1,5 milhão de processos de deportação em análise pelo governo norte-americano. Desses, 38 mil são brasileiros.

REUNIÃO DE URGÊNCIA — Nos bastidores da diplomacia mundial, a aposta é de que o fôlego das deportações será contido pela necessidade que o mercado norte-americano tem do trabalho dos imigrantes. Seja como for, a devolução dos imigrantes ilegais a seus países será uma marca do governo Trump. E ainda que haja exageros evidentes em iniciativas como o uso da prisão de Guantánamo, localizada numa base militar norte-americana em Cuba, para acomodá-los durante o processo de deportação, é preciso que os governos latino-americanos reflitam antes de radicalizar na reação a essa política.

Para começo de conversa, a origem do problema não está nos Estados Unidos, mas dos países que não oferecem aos seus cidadãos a chance de sonhar com um futuro promissor. Portanto, é bom pensar duas vezes antes de fazer o que fez o presidente esquerdista da Colômbia, Gustavo Petro — que, no primeiro momento, se recusou a receber voos de repatriação que transportassem colombianos algemados. Foi como se ele oferecesse a Trump a chance de falar mais alto. Washington reagiu, sobretaxou os produtos colombianos em 25%, e ameaçou elevar a alíquota para 50% caso Bogotá não recuasse. Foi o que bastou para Petro voltar atrás.

Outra tentativa de falar grosso partiu da presidente de Honduras, Xiomara Castro, que também comanda a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos — CELAC. Ela chegou a convocar uma reunião de urgência dos chefes dos Estados que integram o bloco, para tirar uma posição conjunta sobre o tema. Desistiu depois de ser desautorizada por um grupo liderado pelo presidente da Argentina, Javier Milei.

Basta uma corrida de olhos pelo currículo de Xiomara Castro para perceber que qualquer decisão vinda da CELAC não passaria de um panfleto com ideias anacrônicas da esquerda. Eleita em 2022, ela é casada com Manuel Zelaya, ex-presidente de Honduras. Trata-se de um oligarca populista, amigo do falecido ditador venezuelano Hugo Chávez, que, em 2009, foi deposto por tentativa de golpe ao ensaiar manobras que garantissem sua reeleição, o que é expressamente proibido pela Constituição hondurenha. Enquanto tentava se impor sobre a lei, Zelaya se refugiou na embaixada do Brasil — durante a segunda gestão do presidente Lula. E passou a agir como se contasse com a proteção irrestrita do Estado brasileiro — até que o Itamaraty pediu que ele se retirasse.

FERIDAS ABERTAS — Trump, é claro, receberia a reação conjunta dos países latino-americanos, se ela viesse, como uma oportunidade de reafirmar sua política. O presidente norte-americano tem o hábito de fazer estardalhaço ao anunciar seus pontos de vista para, depois, fazer parecer mais brandas as medidas de seu interesse. Em menos de duas semanas na Casa Branca ele já fez mais barulho e demonstrou mais autoridade do que Joe Biden em quatro anos de mandato. A confusão em torno da deportação dos imigrantes não é a maior nem a mais polêmica das ideias que ele vem defendendo desde a posse.

Muito mais grave é o caso das posições em relação à guerra de Israel contra os terroristas do Hamas. Também no que diz respeito a esse tema, Trump agiu como Trump. Ao invés de aderir ao senso comum, que dá como certo o reassentamento dos palestinos nas regiões bombardeadas por Israel durante mais de um ano da guerra iniciada pelos terroristas, ele propõe abrigar as pessoas que estão sem teto em novas cidades, nos territórios do Egito e da Jordânia.

Com essa ideia, ele atingiu três alvos diferentes. No primeiro, obrigou esses dois países a se posicionar explicitamente sobre o projeto de acolhimento dos palestinos. Ao rechaçar a proposta, eles expuseram para o mundo sua insensibilidade em relação ao drama do povo que foi subjugado e transformado pelo Hamas em escudo para seus terroristas.

No segundo, expôs o tamanho do problema humanitário e deixou claro que a fatura pela reconstrução das cidades destruídas não recairá apenas sobre Israel e Estados Unidos. Todos os países que deram palpites sobre a guerra, inclusive o Brasil, terão que se posicionar e demonstrar até onde vai sua sensibilidade diante do problema. No terceiro, e talvez principal, deixou claro que, em sua visão, não há espaço para a implantação de um Estado Palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza — visto que isso servirá apenas para prolongar a tensão numa região que demorará anos, talvez décadas, para ver cicatrizadas as feridas abertas pela agressão covarde dos terroristas a Israel.

Num mundo com problemas dessa dimensão, a questão dos imigrantes ilegais latino-americanos nos Estados Unidos acaba parecendo menor — embora jamais deva ser esquecida.

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