No mês do Orgulho LGBTQIAP+, ativista de São José dos Campos relata suas lutas para sobreviver à violência e ao preconceito. Mulher trans, expulsa de casa aos 19 anos e ex-presidiária: ‘sou exemplo de coragem e esperança’
Reprodução/Arquivo Pessoal
Antes de conquistar a independência financeira e ser referência na luta pela resistência ao direito da pessoa trans, a joseense e ativista Bruniely Lemos foi expulsa de casa e enfrentou diversos problemas nas ruas. Hoje ela luta diariamente contra o preconceito e criou uma associação para garantir e promover os direitos de pessoas trans no Vale do Paraíba e região, além de apoiar pessoas trans em situação vulnerável.
A trajetória da ativista é marcada por desafios, superação e esperança. Bruniely nasceu em São José dos Campos (SP), em 1992. Desde cedo, ela percebeu que era diferente dos outros meninos. Sua voz era mais fina, seus gestos mais afeminados e sua identidade de gênero não correspondia ao seu sexo biológico. Por isso, ela sofreu bullying na escola e na rua, sendo excluída por seus colegas.
“Um dos episódios mais traumáticos que eu vivi foi aos seis anos, quando um grupo de crianças vendou meus olhos e me levou para um parquinho, onde abaixaram minhas calças e me empurraram em um formigueiro. Eu sai machucada e assustada, sem entender o motivo de tanta crueldade”, contou.
Assim como a maioria das pessoas trans, Bruniely cresceu em meio à rejeição, desafeto e violência. Dentro de casa, os dias não eram fáceis. Um pai dependente químico e que violentava a mãe. Ambos eram cristãos e não aceitam a forma como a filha se expressava. E foi na arte e na cultura onde ela encontrou as primeiras oportunidades em descobrir o seu caminho.
Mulher trans, expulsa de casa aos 19 anos e ex-presidiária: ‘sou exemplo de coragem e esperança’
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“Cresci com medo, rejeição e sofrimento, mas também com muita vontade de me afirmar como eu realmente era. Aos 12 anos, perdi a timidez e comecei a me defender de ofensas. Consegui bolsas em cursos de dança e teatro na Fundação Cultural Cassiano Ricardo. Me envolvi também em grupos culturais da igreja e do Programa Escola da Família, onde cheguei até ser presidente do grêmio estudantil”.
Após dar o ponta pé inicial, Bruniely não parou por aí. Iniciou também atividades na Fundação Hélio Augusto de Souza (Fundhas), onde foi presidente de um conselho infantojuvenil e de adolescentes multiplicadores de informação. “Participava de projetos com orientação sexual em prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e drogas, quando me formei em turismo e hotelaria”, contou.
Da zona norte de São José, Brunelly cresceu na Vila Cristina e sempre participou de várias atividades no bairro. Uma delas era a escolinha de samba Filhos do Sol, responsável pela comissão de frente. Foi nessa época que começou a se apaixonar por maquiagem e beleza.
Mulher trans, expulsa de casa aos 19 anos e ex-presidiária: ‘sou exemplo de coragem e esperança’
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A partir de então, surgiram as primeiras oportunidades de trabalho. Com a possibilidade de viajar por diversos estados, Bruniely começou a trabalhar como maquiadora em uma agência de modelos.
“Comecei também a ter coragem de me vestir com roupas femininas quando saia à noite. Aos 19 anos decidi iniciar minha transição de gênero e tomei hormônios sem orientação médica. Também mudei o meu nome social e passei a me apresentar como mulher”, contou.
“Essa decisão teve um alto custo para mim, pois perdi o emprego na agência por eles não aceitarem minha identidade e fui expulsa de casa. Meus pais também não me reconheciam como filha. Sem dinheiro, fiquei sem apoio e perspectivas. Precisei recorrer à prostituição, enfrentando violência preconceito e exploração”, lembrou.
Em meio à vulnerabilidade social, em 2013 Bruniely se envolveu com o tráfico de drogas, foi presa em flagrante e condenada a três anos de prisão em regime fechado. Na cadeia, na região de Presidente Prudente (SP), ela conta que viveu um dos momentos mais difíceis de sua vida.
Mulher trans, expulsa de casa aos 19 anos e ex-presidiária: ‘sou exemplo de coragem e esperança’
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Bruniely conta que foi colocada em uma cela com vários homens, que a assediavam, a humilhavam e a ameaçavam constantemente. “Não tinha acesso a tratamento hormonal e tive que cortar o cabelo, usar roupas masculinas. Me sentia desumanizada e desrespeitada em minha identidade”, disse.
Após cumprir a pena imposta pela Justiça, Bruniely conquistou a liberdade. Ela foi para casa da mãe, onde teve mais dignidade e segurança.
“Ainda assim me sentia presa na margem da sociedade, pois tinha ficado ainda mais difícil. Quem iria dar uma oportunidade para uma mulher trans ex-presidiária? Para mim não existia saída, os pensamentos eram negativos e suicidas, a vulnerabilidade social só aumentava e já não tinha mais vontade de viver”, relembrou.
Mulher trans, expulsa de casa aos 19 anos e ex-presidiária: ‘sou exemplo de coragem e esperança’
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Mas, em 2016, um convite de uma senhora para Bruniely ser revendedora de cosméticos foi o suficiente para que ela encontrasse sentido e tivesse como mudar de vida. Em apenas um ano, ela conseguiu ser destaque na empresa e foi chamada para participar de programas de desenvolvimento da marca.
A partir daí ela começou a se engajar em causas das pessoas trans, participando de eventos, palestras e campanhas pela diversidade e pelo fim da violência de gênero.
Bandeira trans
Reprodução | Shutterstock
Empregabilidade de pessoas trans
As oportunidades de emprego para um jovem sem experiência no Brasil não são fáceis. No caso da população trans, a situação fica ainda mais complicada. Historicamente, os transexuais possuem dificuldades em ingressar no mercado de trabalho e um dos motivos para tal marca é o preconceito presente na sociedade brasileira.
Segundo Carla Silvério, advogada e presidente do Comitê da Comissão da Diversidade de Gêneros de São José dos Campos, os transexuais acabam seguindo para caminhos alternativos por falta de oportunidades e exclusão social.
“Muitas pessoas trans acabam indo para a prostituição, para o uso das drogas, por conta de poucas chances de conseguir um emprego, de ter uma carteira assinada. Eles precisam de renda, precisam se sustentar e partem para isso”, conta Carla.
Devido às exclusões e desafios diários, a empreendedora Bruniely Lemos fundou uma associação para atuar diretamente no movimento trans. Criada em 2019, a “Transbordamos” é uma organização sem fins lucrativos de São José dos Campos que realiza ações para inclusão social de pessoas trans em diversas áreas do cotidiano, principalmente no encontro de um emprego.
A organização oferece apoio social, jurídico, educacional e profissional para pessoas trans e seus familiares. A associação também realiza ações culturais, artísticas e de conscientização sobre a realidade das pessoas trans no Brasil e já ajudou mais de 2 mil pessoas no Vale do Paraíba.
Um dos projetos da instituição foi a criação do selo “Tem Trans Aqui” para indústrias. O ato é uma tentativa de conscientizar o grupo corporativo das empresas sobre o acolhimento de pessoas trans com palestras, dicas, instruções para que posteriormente os locais as contratem.
“Nós percebemos que em alguns casos não eram intolerância e sim ignorância, então decidimos aplicar essa conscientização nos ambientes de trabalho. Muitos realmente não sabem como usar os pronomes, não sabem o que é o nome social etc. Além da nossa tentativa de criar núcleos de inclusão em lugares em que não tenham”, declarou Bruniely.
Ulisses Gianvani foi aluno de Eletricista no Senai e fez parte da turma formada apenas por pessoas transexuais.
Arquivo Pessoal
Vidas transformadas
Ulisses fez parte da primeira turma. Ele ressalta a importância de transexuais obterem uma formação profissional e poderem frequentar uma sala de aula.
“Além do desejo de ter uma CLT, o desejo da pessoa trans de estudar é grande. Historicamente somos negados em sala de aula. No ensino médio adicionaram meu nome social na chamada sem retirar o civil. Tomava falta em um se respondesse a presença somente no outro. Apesar de achar que pessoas trans devem frequentar salas com pessoas cis, este ambiente que criamos é propício para que a gente se desenvolva. Nos faz aprender muito mais”, alega.
O fato de poder retornarem aos estudos é encarado como uma grande vitória para o grupo de alunos. “A gente se sente capaz. Havia muitos anos que eu não entrava em uma sala de aula. Agora me sinto capaz, capaz de competir com uma pessoa cis. Vamos ter mais jeito de competir, mais coragem para entregar um currículo. Um conceito de equidade”, comentou Ulisses.
Ulisses conclui destacando a importância da oportunidade em sua vida. “Costumo dizer que foi um barquinho que passou do meu lado. Um barquinho que Deus mandou e eu tive que pular. Para pessoas cis passam um, dois, três, até dez barcos. O nosso é muito difícil e é quase uma jangada (risos)”, completou.
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