Osmar Gomes Pereira, de 71 anos, é um dos 4,8 mil moradores do distrito de Mariante que começam a retomar suas vidas após sofrerem com as inundações históricas que devastaram o Rio Grande do Sul em maio deste ano. ‘Pode ir, eu não vou’: idoso contraria pedidos e fica em casa invadida pela enchente no RS
O pensionista Osmar Gomes Pereira teve que sair de casa às pressas, dentro de um barco, para fugir da tragédia das enchentes que devastaram Mariante, distrito gaúcho localizado a 130 km da capital Porto Alegre. Sete meses depois, o idoso de 71 anos lembra como se fosse ontem da inundação e, embora ainda conviva com os estragos das cheias, decidiu ficar na vila, comprou duas vacas com o dinheiro do auxílio que recebeu do governo e tenta se reerguer.
O g1 esteve em Mariante logo após as enchentes atingirem a região, mostrou os impactos das inundações e o sofrimento das pessoas atingidas pela tragédia (relembre aqui). Sete meses depois, série de reportagens mostra a realidade da vila, dividida entre a destruição e o desafio de um novo recomeço.
Osmar contrariou os pedidos da esposa, Adélia Gonçalves dos Santos, e aos apelos sobre os riscos de novas enchentes ao permanecer em uma área rural às margens da RS-287, na mesma casa atingida pelo avanço das águas do Rio Taquari, a 4 km do local. A água invadiu a casa feita a 2 metros do chão pelo seu filho.
“Quatro vezes ela me convidou para ir para Venâncio. Todas as quatro eu disse para ela: ‘Tu quer ir? Pode ir, eu não vou’. Pode até vender a terra aqui com a casa e a casa de lá, eu vou ficar com um terreninho para eu morar, mas não vou sair daqui”, diz ao g1.
Seu Osmar e Adélia, sua esposa, em frente à casa que moram em Venâncio Aires (RS)
Fábio Tito/g1
Os motivos são diversos, segundo seu Osmar, que sempre viveu em Mariante. Entre eles está o fato, como diz, de que foi criado como “bicho do mato”. Além disso, o dinheiro também pesa. “Ir para a cidade é a mesma coisa que tirar o pão da nossa boca”, resume.
“O que vamos fazer na cidade? Me diz o que nós vamos fazer com dois salários? Eu e a mulher vivemos com dois salários. Aqui nós vamos viver: cuidar da vaca para tirar o leite, cuidar da galinha para ter o ovo, coisas que não vamos comprar”, detalha.
De volta para casa
Logo após a enchente, seu Osmar foi com a esposa para a casa do filho, que fica no mesmo terreno, mas que foi construída dois metros acima do chão para ficar protegida das cheias. Mesmo assim, a enchente bateu 1,5 metro na casa, e os três passaram a primeira madrugada de maio em um pequeno barco com 5 cachorros.
Osmar e Adélia voltaram a viver na casa onde criaram o filho só na última semana de novembro, depois de o trabalho de limpeza ser concluído e o local ser equipado com móveis doados e outros comprados com parte do auxílio de R$ 5,1 mil recebidos do governo federal.
Idoso corta cana para fazer garapa, o caldo de cana
Fábio Tito/g1
Segundo Osmar, o dinheiro não deu para muita coisa, mas ajudou. Dentro de casa, virou um armário, um gabinete com uma pia de cozinha e um fogão a gás. O restante, cerca de R$ 3 mil, usou para comprar duas vacas, uma leiteira e outra mais jovem.
Mais de 2 mil famílias de Venâncio fizeram a solicitação e receberam o auxílio reconstrução, segundo o governo Lula (PT). O valor chega a quase R$ 12 milhões. Ao todo, os recursos federais destinados ao município somam mais de R$ 200 milhões, segundo dados da Secom. Enquanto isso, outros cidadãos tiveram o auxílio negado e seguem em busca do direito.
“Roupa, colchão, coberta, essas coisas nós ganhamos”, conta o pensionista. Uma parte foi doada pelos operadores que atuaram na construção de desvios na estrada. “Água e comida a gente sempre tinha. Da comunidade, de voluntários. Vinha caminhão lotado ali para a comunidade”.
Casa em que seu Osmar estava e precisou abandonar para salvar esposa, filho e cinco cachorros
Fábio Tito/g1
A insistência de seu Osmar não faz dele o único a continuar morando no distrito, localizado em uma área considerada de risco para novas inundações — e que piorou com o assoreamento do Rio Taquari, que fica a uma rua das casas e comércios da Vila Mariante.
Mapa mostra área de risco na Vila Mariante
Arte/g1
Um vizinho, que também teve a casa invadida pela água, tenta reconstruir o imóvel. Há também quem voltou para a Vila Mariante e seus arredores para tentar um novo recomeço. Pode soar estranho, mas o termo “novo recomeço” não é um pleonasmo para quem resiste às enchentes em Mariante. Foram três em pouco mais de um ano: em setembro e novembro de 2023 e em maio de 2024.
Cada morador viveu de forma diferente o mesmo impacto de perder a casa — mesmo que por um tempo e não de uma vez por todas. Uns ficaram nas casas de parentes ou amigos, outros em abrigos da Prefeitura de Venâncio Aires e, depois, em aluguel social pago pelo município. São 250 famílias nessa situação até que novas casas sejam construídas. A previsão de entrega é novembro de 2025, segundo o prefeito Jarbas da Rosa (PDT).
Posto de saúde de Mariante precisa de reforma para ser reaberto. Estrutura não foi danificada pela enchente
Fábio Tito/g1
O que diz o poder público
Para quem voltou para a área de risco atingida pela enchente, a Prefeitura diz prestar suporte necessário com saúde, educação e serviços públicos. As crianças têm ido para uma escola estadual distante 10 km da Vila com transporte pago pela Prefeitura. Quanto à saúde, a prefeitura diz que há atendimento semanal com unidade móvel e outros atendimentos podem ser feitos na área urbana de Venâncio.
“Nossa unidade de saúde ficou intacta parcialmente. Ela é dividida em uma unidade em fase de demolição, iríamos construir uma nova, e um prédio anexo. Estamos em fase de recuperação do anexo porque não precisa de reformas, então não serei apontado pelo Ministério Público”, diz o prefeito de Venâncio Aires, Jarbas da Rosa (PDT).
O prefeito afirma que o município fez um mutirão para limpeza das casas de quem decidiu voltar a Mariante. Segundo ele, existe a possibilidade de os moradores reconstruírem os imóveis que já existiam na Vila Mariante, sem construir novos prédios.
“Nós temos uma questão de responsabilidade do gestor público que é com relação à reocupação das áreas. Nós temos a APP [Área de Preservação Permanente] que tem que ser cumprida. Grande parte dessas casas destruídas estavam em APP porque são construções que tinham 50, até 100 anos”, diz.
Ao g1, o governo do Rio Grande do Sul, administrado por Eduardo Leite (PSDB) afirmou que promoveu ações na região de Venâncio Aires “desde os primeiros dias da enchente”, com repasses que somam R$ 7,9 milhões em recursos para a cidade, entre benefícios sociais às famílias, apoio a empresas locais, reformas de hospitais, unidades de saúde, de educação e infraestrutura.
Ao g1, o governo federal afirma que destinou até o dia 13 de dezembro mais de R$ 200 milhões em recursos para Venâncio Aires (RS), entre valores para o cuidado com as pessoas, apoio às empresas e medidas gerais para o município.
O governo Lula estima em R$ 58,5 bilhões o total de verbas destinadas para a reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes de maio.