Temporal histórico deixou 64 mortos e demandou onda de solidariedade na cidade. Seis meses após tragédia de São Sebastião, voluntários recordam ações e se emocionam ao lembrar histórias de vítimas.
Reprodução
Mesmo passados seis meses, a tragédia de São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, continua deixando cicatrizes em que foi vítima do maior registro de chuva em um período de 24 horas na história do Brasil.
Além disso, os dias seguintes à catástrofe deixaram lembranças eternas também para quem participou dos trabalhos de resgate e de voluntariado. Diversas pessoas se uniram para atender à demanda gigante que existia naquele momento.
Deslizamento em São Sebastião
Amanda Perobelli/Reuters
Confira um resumo da tragédia
Confira abaixo histórias de três pessoas que se voluntariaram e atuaram de maneiras diferentes, mas com o mesmo objetivo de auxiliar as vítimas da tragédia da cidade:
Cátia Amorim Silva
Moradora de São Sebastião há 19 anos, a Cátia Silva trabalha como faxineira do instituto Verde Escola. O local oferece educação complementar aos alunos da cidade, mas foi utilizado por mais de 10 dias após a tragédia para abrigar corpos, desabrigados e prestar todo tipo de apoio às vítimas das chuvas.
Cátia Amorim Silva, do Instituto Verdescola
Divulgação/Instituto Verdescola
Ela também foi vítima do temporal, já que mora no bairro Vila Sahy, epicentro da catástrofe, mas teve principalmente uma atuação como voluntária no episódio.
Depois de precisar deixar a casa onde mora durante a madrugada do dia 19 de fevereiro, por conta dos riscos de deslizamento de terra, a Cátia tentou acordar os vizinhos para que todos também deixassem o local o quanto antes.
“Eu estava fazendo um churrasco com a minha família quando começou a chover. A chuva ficou mais forte e aí paramos o churrasco e fomos dormir. Me lembro de acordar com gritos de socorro e, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo, levantei e comecei a acordar os vizinhos”, conta.
Parte do trabalho desenvolvido no instituto Verdescola
Em seguida, a faxineira foi às pressas em direção ao instituto, localizado na mesma região, para se proteger. Chegando lá, no entanto, ela notou que a situação já era muito grave e inúmeras pessoas precisavam de ajuda urgente.
Dali em diante, ela passou 20 dias seguidos no Verdescola prestando assistência às vítimas. “Não tive mais coragem de subir o morro e precisava ficar ali para ajudar. Eu nem sabia se minha casa tinha sido destruída, porque não voltei mais para lá”, se recorda.
A solidariedade de Cátia naquele momento foi essencial para que a cidade ganhasse um perfil de voluntário para uma função que tinha muita demanda, mas que ninguém queria assumir: cuidar do setor funerário, local em que ficaram as pessoas que morreram soterradas.
Ela se lembra do momento em que decidiu ajudar no cuidado com os corpos, mesmo sem nunca ter tido nenhuma experiência nesse sentido.
“Vi uma mãe dando banho em um bebê e ofereci ajuda. Perguntei se precisava de algo e ela me respondeu que ele estava morto. Disse que estava apenas tirando a terra do corpo. Foi um choque para mim.”
“Em seguida achei um cobertor enrolado em um canto da sala e, quando abri para ver o que era, encontrei o corpo de uma criança de quatro anos. Ali acabou meu mundo. Senti a necessidade de dar um carinho e abrigo melhor para eles (pessoas que morreram)”, conta.
A partir de então, a faxineira ficou responsável pelo setor que recebia os corpos, os limpava e separava para que as famílias fizessem o reconhecimento, antes do sepultamento.
Sede do Instituto Verdescola, que está sendo utilizado como centro de apoio para a população de São Sebastião.
Fábio Tito/g1
Cátia conta que tudo foi muito marcante, até porque nunca tinha tido contato com isso na vida. Algumas situações, inclusive, vão ficar marcadas para sempre na vida dela.
“Eu fiquei muito tocada quando chegaram os corpos dos meus vizinhos. Era um pai e dois filhos… eles estavam agarrados. Eu não acreditei quando vi aquilo porque os conhecia.”
Apesar da dor e do sofrimento estarem presentes a todo momento durante os dias em que trabalhou como voluntária da tragédia, a moradora de São Sebastião não tem dúvidas em dizer que o auxílio prestado vale a pena.
“Eu me orgulho muito. Lembro de ver cada rostinho e sentir um alívio em saber que teriam o direito de serem velados e enterrados. Foi tudo muito triste, mas fico feliz em ter dado um conforto às famílias que viveram esse pesadelo”, conclui.
Gabriel Paulo
Outro morador da Vila Sahy que atuou como voluntário durante a tragédia é o cabelereiro e corretor de imóveis Gabriel Paulo, que estava se arrumando para sair para aproveitar o carnaval de noite, quando a chuva se intensificou.
Gabriel se voluntariou para ajudar vítimas da chuva em São Sebastião.
Arquivo pessoal
Às 22h já havia enchentes na região e os primeiros deslizamentos aconteceram por volta das 2h40. A casa em que ele mora não chegou a ser afetada, mas diversos vizinhos do bairro perderam o lar nos desmoronamentos.
Foi aí que o Gabriel deu início a uma intensa sequência de 40 dias de ajuda ao próximo. A primeira ação foi acordar os moradores e ajudá-los a levantar móveis que eram arrastados pela chuva.
Nesse momento, no entanto, ele ainda não tinha noção do tamanho da destruição. “Ouvi barulhos muito altos que achei que eram trovão, mas na verdade era o morro descendo”, lembra.
Logo em seguida começaram a chegar as primeiras informações de pessoas muito feridas vítimas fatais, o que foi chocante para ele e para o grupo que tentava ajudar no que for preciso.
“Fizemos uma trincheira de fuga para atravessar quem estava machucado e corpos, que vinham enrolados em lençóis, em caixas d’água. Era um cenário de guerra, foi assustador. Era muita gente sofrendo, desesperada, pedindo ajuda. Lembro de ter atravessado uma criança na enchente e até hoje, quando me vê, ela me para, me dá um abraço e me agradece”.
Nos dias seguintes, o Gabriel ficou em uma escola que virou abrigo para as vítimas e onde ele fez todo tipo de trabalho voluntário.
A primeira missão no local foi organizar a equipe que estava à disposição de ajudar para atender melhor os desabrigados.
Escola Henrique Tavares De Jesus, em São Sebastião, virou abrigo após a tragédia e foi onde o morador Gabriel Paulo atuou como voluntário
Reprodução/Google Street View
“Tinha muito voluntário, mas estava muito bagunçado. Tinha gente que era de fora e estava passando o carnaval na cidade, mas ficou presa e decidiu ajudar. Então separamos as equipes, mas fazíamos várias funções, desde atendimento médico até auxílio no reconhecimento de corpos.”
Os 40 dias de ajuda foram intensos e muito cansativos, segundo o corretor, que só parou para dormir no quarto dias após a tragédia. Nos dias mais exaustivos, o que o motivava e dava força para continuar empenhado era poder contar com a ajuda de outros voluntários.
“Eu só dei conta porque cruzei com pessoas incríveis que me deram suporte e estrutura para tudo continuar funcionando. Conheci uma estudante de psicologia que sempre me ajudava a entrar em contato com as famílias para chamar para o reconhecimento. Tinha também uma mulher que pegou quatro barcos para vir de Ilhabela fazer recreação para as crianças abrigadas”, lembrou.
Graciano acolheu desabrigados da chuva em casa e em uma pousada.
Arquivo pessoal
Graciano Filho
Quem também contribuiu com o amparo às vítimas, mas de outra maneira, foi o empresário Graciano Filho, dono de uma pousada na Barra do Sahy. O local virou abrigo para cerca de 40 pessoas por mais de dois meses.
Tudo começou com uma preocupação com o filho, que estava em uma festa em Maresias, na madrugada em que a tragédia aconteceu. Com a chuva acima do normal, o Graciano e a esposa Amanda Santos ligaram o sinal de alerta e ficaram preocupados.
Vila Sahy foi atingida por tempestade no último fim de semana
Fábio Tito/g1
Como o jovem não tinha voltado até a manhã de domingo, e não havia como se comunicar por conta da queda de sinal, os pais decidiram sair de casa para procurá-lo.
Ao passar pela Vila Sahy, no entanto, o casal se deparou com a destruição total e, chocado com a situação, decidiu parar para ajudar. Neste momento, muitos corpos já haviam sido encontrados.
Como era carnaval, a pousada tinha um grande estoque de água, que logo foi levado às vítimas.
“Levei água e mantimentos para as pessoas lá, pois tudo já estava em falta. Além disso, a minha mulher e minha sobrinha são enfermeiras e voltaram comigo para atender os feridos”, diz Graciano.
Pousada que abrigou famílias após o desastre em São Sebastião
Arquivo pessoal
Depois de prestar os primeiros socorros, o empresário percebeu a quantidade de pessoas que perderam casa e teve a ideia de usar a pousada para abrigá-las.
“Coloquei a pousada à disposição e lá ficaram cerca de 40 vítimas, por mais de 60 dias. Servimos refeições todos os dias e ajudamos as pessoas no que pudemos”, contou.
“Queria ter abrigado mais gente, mas não tínhamos mais espaço. Lembro que o que me tocou muito foi uma família com uma criança especial. Eles não tinham onde ficar e aí chamei para ficarem na minha casa mesmo, porque a pousada já estava lotada”, disse.
Pousada que abrigou famílias após o desastre em São Sebastião
Reprodução/TV Globo
Desde então, a pousada não voltou mais a receber turistas. O Graciano explica que o local teve alguns problemas estruturais após servir de abrigo e, sem recurso durante todo esse período, não conseguiu reformar. Mesmo assim, tudo valeu a pena.
“Fizemos de coração. Ver o sorriso e o alívio das pessoas em ter onde ficar era gratificante. Era algo que amenizava toda dor daquele momento.”
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